A CARIDADE É O VÍNCULO PERFEITO

A CARIDADE É O VÍNCULO PERFEITO
Sobre precaver-se de um “magistério paralelo”
Ronaldo José de Sousa
  • A recente polêmica em torno da Declaração Fiducia Supplicans2 revela algumas coisas
  • curiosas a respeito do catolicismo contemporâneo. Entre elas, a tendência de muita gente em
  • se apegar a aspectos que nem são os mais centrais nos textos do Magistério, abstendo-se de
  • uma leitura completa e atenta para compreender melhor o significado de suas propostas.3 Tal
  • apego não deveria ser uma prática nem mesmo da imprensa secular, quanto mais de prelados,
  • catequistas e influenciadores católicos, pois grande parte dos fiéis se baseia em seus
  • ensinamentos para construir convicções.
  • As discussões envolvendo as possíveis bênçãos a casais em situação irregular foram
  • acirradas, mesmo tendo a Declaração se detido longamente na reafirmação da doutrina
  • tradicional e na distinção entre as bênçãos litúrgicas e aquelas de cunho pastoral, que não
  • exigem as mesmas disposições morais requeridas para a recepção dos sacramentos (cf. n. 4-
  • 13). O esforço do Dicastério em tornar o texto equilibrado parece não ter sido suficiente para
  • conter a oposição daqueles que consideram determinadas concessões um risco de confusão
  • para a consciência dos cristãos.
  • Existe um problema muito preocupante que o catolicismo atual enfrenta – pelo menos
  • no Brasil - de que, a meu ver, a controvérsia suscitada pela Fiducia Supplicans é apenas mais
  • um sintoma. Refiro-me a um clima geral que autoriza qualquer católico a se posicionar
  • publicamente contra ou a favor de algo cujo encargo pastoral não lhe pertence. Algumas
  • figuras religiosas – especialmente as midiáticas – assumiram essa pseudorresponsabilidade
  • como uma verdadeira missão. Elas se acham no dever de “esclarecer” aos fiéis, mesmo que
  • estes não pertençam ao seu rebanho e estejam sob a custódia do próprio Papa (como seria o
  • caso em que, usando pretexto pastoral, se critica episódios ocorridos na Diocese de Roma).
  • Quando, por exemplo, um presbítero de uma determinada Igreja Particular emite
  • parecer doutrinário sobre algo acontecido em outra diocese, no intuito de catequizar
  • adequadamente o povo, ele está aderindo a este espírito de réplica, do qual não consegue se
  • subtrair. O fato do ocorrido ser inadequado ou heterodoxo em nada altera a inconveniência
  • de quem se porta dessa maneira, pois o dever de intervir seria do ordinário local (cf. CDC, c.
  • 386.391-392). Outrossim, se um missionário leigo, pelas mesmas razões, exige explicações de
  • um padre (que certamente tem um superior, seja bispo ou provincial) sobre qualquer assunto
  • de doutrina, ele invade um campo que não é de sua competência. Nesses e noutros casos, a
  • publicação é um agravante, porque as mídias não são, em hipótese alguma, o foro adequado
  • para solucionar eventuais erros de ortodoxia ou de comportamento.
  • Grosso modo, essas intervenções não são apenas “opiniões”. Opinar poderia ser
  • considerado legítimo, desde que isso fosse feito nas alçadas certas. Tratam-se de verdadeiras
  • apropriações, para não dizer usurpações, porque o poder de influência de vários desses
  • pregadores é capaz de criar uma espécie de “magistério paralelo”.4 Em alguns casos, falta
  • sensatez no uso das palavras e, por causa disso, cria-se um clima bélico em essência. Não seria
  • exagero identificar a infiltração no catolicismo brasileiro do princípio do livre exame, conforme
  • já advertiu Dom Fernando Rifan: “Muitos se posicionam absurdamente como juízes do
  • Magistério e até mesmo juízes no lugar do Magistério”.5 Curioso é o fato de que quem faz isso,
  • geralmente é crítico ferrenho do protestantismo.
  • É preciso ter muita cautela quando se fala “em nome da verdade”. Pois a verdade é
  • uma Pessoa e é ela que deve nos possuir, não o contrário (cf. Jo 14, 6). Movimentos cismáticos
  • não costumam invocar a mentira como seu baluarte. A prudência e o discernimento são ainda
  • mais imperiosos quando se pretende interpelar o Magistério Vivo da Igreja. Justificar tais
  • interpelações com artigos do Catecismo ou do Código de Direito Canônico é, no mínimo,
  • temerário. Mesmo os dogmas carecem de uma “recepção histórica” inteligente, sendo
  • necessários, para isso, tempo, paciência, diálogo e tolerância. Muitos foram os que já
  • cometeram erros nessa matéria, especialmente quando quiseram exortar o Papa. Segundo
  • Raniero Cantalamessa - com o qual concordo - até São Paulo incorreu nesse engano (Gl 2, 11-
  • 14).6
  • Não obstante o contexto atual exija uma nova visão a respeito da territorialidade
  • eclesial, há que se precaver contra esse “magistério paralelo”, sendo esta precaução uma
  • tarefa das autoridades constituídas, dos influenciadores católicos e – extensivamente – de
  • todos os cristãos. Estes não devem se deixar arrastar à deriva por todo “vento de doutrina”,
  • nem se permitir ludibriar pela astúcia dos homens e incorrer no erro (cf. Ef 4, 14). Não é
  • possível julgar as intenções de quem vem a público munido de argumentos em suposta defesa
  • da fé, confrontando os pastores de ofício e, na prática, invadindo circunscrições eclesiásticas.
  • Porém, é lícito e cauto questioná-las, sabedores que somos de que pregadores midiáticos
  • necessitam de presença frequente em seus canais, com temas atraentes e, neste particular,
  • nada melhor do que polêmicas e fatos arrebatadores.
  • Quando vejo querelas em torno do certo e do errado, às vezes com lados opostos se
  • desrespeitando entre si ao defender aquilo que consideram mais virtuoso, recordo-me de que
  • a caridade é o único vínculo perfeito que une tanto as virtudes quanto as pessoas. E sinto falta
  • dela! Sinto falta do dom por excelência que nos reveste de sentimentos de compaixão,
  • benevolência, humildade e paciência. E que nos capacita para o perdão e o suporte mútuo (cf.
  • Cl 3, 12b-14). Mas tenho esperança de que o amor ocupe os nossos corações, pois somos
  • “eleitos de Deus” (cf. Cl 3, 12a). Tenho esperança de que nos apeguemos a ele a fim de superar
  • a dicotomia que afeta nossas relações, tornando-nos verdadeiramente um só corpo na
  • diversidade de opiniões (cf. 1 Cor 12, 12) e já não sintamos mais saudade daquilo que nos une.
Categoria:

Deixe seu Comentário